segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A gueixa dos olhos de mar

Lá fora, só por olhar a paisagem e contemplá-la, ninguém saberia nos dizer qual é a estação na qual nos encontramos. Parece outono, mas os frutos já não dão mais como antes. Primavera seria se tivéssemos os ipês a colorir as ruas. Verão e inverno temo-los num mesmo dia. Amarelo e cinza são as cores que, habitualmente, revezam-se nos sobre-tons que pintam o quadro diurno da cidade. Pela noite, tudo parece breu.
            Estavam, ou melhor, estávamos, pois eu, como narrador onisciente e onipresente, encontro-me sempre num ângulo privilegiado para narrar a história e participar ou influenciar-lhe quando bem entender, pois bem, estávamos num bar. Alguns chamariam de boate, pode ser, depende dos olhos de quem analisa, ou apenas vê, não nos prenderemos a isso. Sabe-se que há um balcão de mármore negro, bebidas de todos os tipos na parede, são prateleiras e fileiras de destilados e fermentados, teor alcoólico para todos os paladares. Deste ângulo, nota-se uma bela garrafa de absinto, de cor verde, além de uma outra de tequila, uma de vodka, vinhos de todos os lugares do mundo, atualmente os japoneses são os mais populares, agora eles têm mais território para plantar e para viver, os do Porto têm aparência atraente, mas ainda prefiro o suave de Bordeaux. Há uns recipientes estranhos que comportam bebidas de cores diferenciadas, que brilham. Do lado de lá do balcão, belas garotas, claro está, neste caso a minha preferência como voga, trabalham a servir a clientela, toda ela do sexo feminino, digo-lhes desde já. Mas todas as raças se misturam, há fêmeas para todos os gostos. Poltronas, sofás e bancos, em sua maioria de couro, acreditamos que por motivos afrodisíacos e não de limpeza... - bom, de limpeza também -, encontram-se espalhados pelos cantos do espaço, formatado geometricamente, lembrando um labirinto de salas. A música que embala a dança é algo irreconhecível aos ouvidos comuns, notas semi-inexistentes aliadas a uma harmonia surreal; trata-se de um som entorpecente, narcótico e inebriante, talvez já tenhamos a explicação para o fato de que todas elas se movimentam como quem sonha estar a nadar, umas como a fugir de uma presa aquática, outras a acasalarem-se num aquário de transparências.
            Não há muitas pessoas. Parece-nos uma festa privada. Há o suficiente para que façam sexo umas com as outras sem enjoarem-se, entretanto, elas já não precisam mais disso se não quiserem, as bebidas e as danças já lhes proporcionam orgasmos múltiplos e ininterruptos. Precisamos de um novo Darwin para registrar a nova evolução da espécie.
            E lá vem ela, saída não se sabe de onde, vestida de um preto quase transparente, roupas sem corte, estilosamente rasgadas, apenas com algumas aberturas estratégicas. Usa uma bota igualmente negra, cano alto, até os joelhos, salto fino, que faz com que ela pareça ainda mais soberana. Seus olhos são mares orientais, cabelos negros e compridos, lisos e inebriantes. Magra em suas curvas e formosura. Anda a passos firmes e leves em direção ao que deseja, observando fixamente o ponto-alvo, como uma leoa que aguarda o momento certo de atacar a sua presa. A mulher que será abordada em alguns instantes não sabe, mas o perfume da Senhora a inebriará e elas se tornarão amantes nesta noite.
            Não há mais homens por aqui. Nem aqui dentro, nem lá fora, em lugar algum. O feminino impera por completo, como outrora dominava sem darmos conta, a única diferença está na exclusividade da presença. Elas têm sêmen de qualidade armazenado em segurança pelo tempo que quiserem manter-se somente mulheres. Se optarem pelo masculino, o que não nos parece provável neste momento, abrirão a caixa de cor branca, com a permissão da Senhora, claro está, pois é ela quem detém o poder por aqui, bem como as senhas e as chaves. Caso contrário, continuarão a se reproduzir com o conteúdo da caixa negra. Devem estar se perguntando o porquê da escolha das cores, sinto muito, eu também não sei.
            Enfim, as duas jovens estão num cômodo especial agora, único, ímpar, o quarto da Senhora. Essa mestiça, uma semi-oriental, de olhos verdes e pele indiana tem o costume de escolher uma parceira quando lhe apetece. Normalmente ela permanece sozinha, organizando e planejando tudo, pois tudo o que se pode ver até a linha do horizonte lhe pertence. A decoração do ambiente é encantadora. Há espelhos em locais inesperados, cores planando suavemente, exalando odores extasiantes. Ouve-se o barulho de água em algum lugar, parece uma mini-cachoeira. Talvez esteja no toilette ao lado. O clima é fresco e aconchegante agora. É deveras um aposento no qual se deseja estar. A moça que já está despida sorri por ter sido a escolhida. Ela realizará o sonho que é também o  de todas as damas que estão lá fora, pois a Senhora é o deleite maioral. Tomam uma bebida especial, saborosa, relaxante, mas que só fará efeito daqui há algumas horas.
            Elas já se amam, usufruem-se reciprocamente, parece que se tocam sem tocar-se. São duas plumas, são duas partes encaixadas de um quebra-cabeça. São o pecado que já não existe mais. São o prazer. São tudo que um corpo pode desejar. São-se e só.
            Ao raiar, a Senhora já estará sozinha. Ninguém lembrará do ocorrido. A escolhida não mais a será e não saberá nunca que a foi, dará vez a outra felizarda, podendo ser ela mesma, se tiver sorte. A Senhora continuará com seus afazeres, bem mais relaxada, obviamente, e esperará os sinais do corpo para realizar mais uma vez esse ritual sacro-profano de delícia e esquecimento.

Marco Hruschka

PS: Foto Le sommeil (O sono), de Gustave Courbet, 1866.

7 comentários:

Unknown disse...

Oie Marco !

Eu me lembrava do inicio desse conto, mas, era dificil imaginar qual seria o rumo da historia. E voce, o conduziu muito bem ...

Eu sinto algo muito profundo em suas descricoes. Uma forma de escrever mais solta e leve, e ao mesmo tempo mais substancial ...

Parabens pela sua nova forma de escrever.
Saudades

Luigi Ricciardi disse...

Man, to feliz pra caramba de ter lido esse conto. Não me lembro se eu já o tinha lido. Se sim, não havia dado a devida atenção. É o teu melhor conto. A leitura flui facilmente e o poder de imersão do texto devido ao sucesso da descrição é muito forte.
Todos nós já sabemos que o mundo já é delas. Mas ainda sonho na possibilidade de que elas nos deixem compartilhar a vida com elas.
Com certeza elas farão uma sociedade com menos tabus, mas porra, eu quero estar lá para ver isso. Que precisem de nós ao menos um pouco hauhauhauahuhauhauhauahu.
Mas é isso. Parabéns pelo conto. O lirismo está na dose correta, nem falta, nem sobra.

E que Darwin nos ajude!

Anônimo disse...

incrível ver que mesmo tendo estudado letras, mesmo escrevendo bem (muito bem), você nao tem uma alma literária, não tem o sentimento. Você é estritamente teórico em sua essência! Isso não é uma qualidade!

Marco Hruschka disse...

Olá senhor (a) anônimo (a)! Muito obrigado pela visita ao meu blog. Fico feliz pelo comentário. Críticas são sempre bem-vindas. Mas gostaria de esclarecer uma coisa sobre esse narrador. Falo dele, pois foi inventado com tais características para atender às necessidades do meu texto. Gostaria de saber se já leu algum outro texto meu? Porque foi exatamente nesse conto que eu quis "inventar" uma maneira nova de escrever, justamente trabalhando um narrador mais distanciado, mas que ao mesmo sabe de tudo, e brinca com isso. É um narrador irônico e sarcástico, uso esses dois termos porque eles têm sentidos diferentes e se completam aqui. Não tive intenção de colocar alma nesse texto. É um texto atípico de minha escrita, mas que gosto muito. Experimente alguma poesia, ou um conto romântico. Quero ver mais comentários teus. Espero que me visite mais vezes. Abraços!

BAU DO FAEL disse...

uau....gostei do que li...

muito bom..

Vou dar uma fuçada por aqui, se me permite.

abraço

Anônimo disse...
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Rinaldo Albuquerque disse...

Marco,

Li seu texto " A gueixa de olhos de mar". Iniciado de forma primorosa, com uma breve porém contundente alusão ao tempo. Aqui o quadro multicolorido remete a uma mescla de estações. Que sacada magnífica: arrebata-nos, de imediato, os sentidos para um ambiente tão imaginário quanto real. O narrador segue desnudando-se como um ser que posto numa posição quase divina; tendo o privilégio de vê tudo, sentir tudo e, ainda que de forma implícita, determinar todos os rumos. a descrição do ambiente é de uma minuciosidade espantosa. Podemos vislumbrar detalhes que, talvez, não seríamos capazes de observar estando de corpo presente. Vinhos japoneses, portugueses, franceses: que gosto apurado! a mescla de emoções que emana da música é um verdaveiro e entranhável ópio. Que desejável orgia esse festival de palavras tão bem articuladas, desfilando ante meus olhos. Entre tantas mulheres, que explendorosa mulher é esta toda revestida de altivez? Que postura, que trajes, que modos lhe cairiam melhor que estes que lhe dera, óh soberano narrador? Nenhuma outra mente, por mais ostensiva que fosse, a conceberia mais provocante. Mulheres que se bastam em sua autosuficiência, pudera! Que universo engenhosamente surreal. O devaneio aqui tem formas, cores, cheiros e sabores magistrais. O pecado assassinado pela ânsia de prazer, convertendo em leves plumas aquelas almas outrora condenadas ao inferno. Dante deixaria de lado seu "Banquete" para se deliciar com o teu, óh lúdico narrador! Quem dera eu visse o universo destas alturas onde te deitas a delirar. Parabéns e continue a nos agraciar com sua arte tão original.

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Maringá, Paraná, Brazil
Marco Hruschka é natural de Ivaiporã-PR, nascido em 26 de agosto de 1986. Morou toda a sua vida no norte do Paraná: passou a infância em Londrina e desde os 13 anos mora em Maringá. Sempre se interessou em escrever redações na época de colégio, mas descobriu que poderia ser escritor apenas com 21 anos. Influenciado por professores na faculdade – cursou Letras na Universidade Estadual de Maringá – começou escrevendo sonetos decassílabos heroicos, depois versos livres, contos, pensamentos e atualmente dedica-se a um novo projeto: contos eróticos. Seu primeiro poema publicado em livro (Antologia de poetas brasileiros contemporâneos – vol. 49) foi em 2008 e se chama “Carma”. De lá para cá já, entre poemas e contos, já publicou mais de 50, não apenas pela CBJE, mas também em outras antologias. Em 2010 publicou seu primeiro livro solo: “Tentação” (poemas – Editora Scortecci). Em 2014, publicou “No que você está pensando?” (Multifoco Editora), livro de pensamentos e reflexões escrito primordialmente no facebook. É professor de língua francesa e pesquisador literário.

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