quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Bem-me-quer-mal-me-quer

           Não estava conseguindo dormir. Tivera sonhos agitados. As imagens eram dispersas e rápidas, flashs ligeiros, embaralhados, várias cenas ao mesmo tempo. Rolara na cama desde a hora em que se deitou, virava de um lado para outro, trocava de travesseiros, trocava de sonhos iguais. Suava. O ventilador estava ligado, mas lá fora estava fresco, era primavera. De fato, há coisas que fazemos somente pelo hábito. Era herança do verão, pois. Chovia. O barulho da chuva o incomodava. Todo ruído que não fosse o de seus pensamentos o incomodava. Com o alvoroço dentro de si ele já se acostumara. A lua já não aparecia nos céus, estava escondida entre nuvens negras e pensamentos longínquos.
            Sentiu o estômago torcido, achou que estava passando mal. Resolveu levantar-se. Meio zonzo, com a cara contrariada, saiu do quarto sem acender nenhuma luz, guiando-se pela experiência adquirida em noites em claro. Foi direto à cozinha, pois era lá que guardava sua caixa de medicamentos. Esbarrou na mesa, não era comum. Então acendeu as luzes. Tomou remédio para dores de cabeça. Em seu inconsciente, achava que eliminaria o turbilhão de imagens desconexas que insistiam em lhe perturbar. Em seguida, sal de frutas. Alívio parcial. Foi até o banheiro. Olhou-se no espelho do armário. Abriu bem os olhos verificando se encontrava alguma anomalia. Em seguida, a boca e a língua. Depois ergueu a cabeça para observar as narinas. Não havia nada de errado com seu rosto, mas sentiu vontade de usar cotonetes nos ouvidos. Achou que poderia tocar seus pensamentos com o objeto. Os cotonetes seriam a ponte entre si e seus segredos, o milagre, a epifania, o mapa do tesouro, a descoberta. Enfiou o mais fundo que pôde. Ambicionava ser-se um só, corpo e mente, para poder controlar-se. No entanto percebeu que não podia, estava além de seu alcance, de seu poder. Conteve-se no limite e outro alívio tomou-lhe a alma, uma sensação de leveza. Entretanto, ele não sabia, mas as imagens continuavam lá.
            Voltou à cozinha, abriu a geladeira e ficou imaginando o que realmente ansiava. Seria fome? Sede? Desejo? Esperança, talvez? Tudo! Misturado e conturbado como também era a sua vida. Ele pensava demais, mesmo quando não queria. Sentia demasiado também, mas isso era por opção. Num reflexo instintivo, apossou-se do litro de leite e sorveu-o todo. Ao fim, sorriu sem perceber, de um sorriso ligeiro e sincero.
            Andou pela casa sem saber o que estava fazendo até que viu a porta de vidro da sala, que dava para a sacada. Vou tomar um ar, pensou. Saiu. A brisa primaveril percorreu-lhe o corpo, arrepiando-o. Sentiu calafrios. O mais provável seria aconselhar-lhe um agasalho mais grosso, não se pode abusar da saúde. Mas não era o caso. Era um sinal. Um pressentimento, talvez.
           A chuva cessara. Olhou para o céu, todo renovado, e agora podia ver a lua, branca e linda. Sentiu uma admiração inexplicável, pois essa cor lhe trazia lembranças. Beberia essa lua, associou. Mas não podia porque já estava cheio, repleto de si mesmo. Ficou ali por alguns minutos, refletindo e aguardando uma estrela cadente, Pediria uma noite de sono, falou em voz baixa. Eles não vieram, nem a estrela e nem o sono. Olhou para baixo e viu uma margarida que acabara de desabrochar em seu minúsculo jardim, ali mesmo na sacada no apartamento. Fez uma cara de déjà-vu. Pétalas alvas e miolo amarelo. Colheu a flor e a cheirou. Em seguida, sem se dar conta, começou a tirar suas pétalas, uma de cada vez: bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer... de repente, ele ouviu um barulho inesperado. Era a sua campainha. Meio assustado, foi até a porta, abriu-a e seu coração descompassado sentiu um alento. Ela usava um vestido longo e branco, o preferido dele.  Os cabelos cacheados e louros brilhavam, mesmo na madrugada. Sorria timidamente e exalava um perfume floral. Viera lhe pedir um abraço reconciliador e devolver-lhe as noites de sono que ele tanto desejava.

Marco Hruschka

6 comentários:

Ana Maria disse...

Era só isso que eu precisava ler hoje. Espero que dessa fonte jorrem outros rios claros e divinos como esse que me faz sorrir diante de sua beleza natural agora. Beijos

Anônimo disse...

Achei muito legal! principalmente a parte do cotonete.. é uma coisa tão cotidiana, mas vc faz com que a gnt o veja com outros olhos!
Vc tem insônia sempre? descreveu tão bem a sensação..
é realmente terrível!
Parabéns! ;)
beijo

Cintia Stotz Siqueira disse...

Cada dia q passa admiro mais a sua sensibilidade diante de coisas tão simples como usar um simples cotonete....
Te adoro porque vc sempre me fáz pensar...
Quanto as noites de insônia, pense em mim, ou vai tentar tocar seu violão...
Te adoro e continue sendo sempre tão sensivel e inteligente, me orgulho por te conhecer, mesmo q pouco ainda.

Beijos e mais beijos, vc merece todos.

Unknown disse...

A quanto tempo eu não visitava seu Blog e, quanta coisa eu perdi !
Estava passando pelo meu e-mail e resolvi dar um espiadinha...
Não consegui parar de ler !!!!!

Parabéns Marco !
Sempre falei muito bem de seus poemas, mas, seus contos estão cada vez melhores !
Adorei esse !! Cada pedaço dele !

Continue assim..

Beijos e Saudades !

Julio Teles disse...

No início não dei muita bola sobre o que voce escrevia, com o passar do tempo aos poucos fui lendo suas poesias e seus contos.
Sempre que terminava um conto novo ou uma poesia você me chamava para me mostrar.
Gosto de todos, mas este "Bem-me-quer-mal-me-quer" é de uma inspiração que só poderia ter vindo de você.
Me desculpe se demorei tanto tempo para enxergar a maravilha que é seu trabalho.

Parabéns meu filho.
Te amo

Rinaldo Albuquerque disse...

Marco,


Que sutileza poética essa de captar os sentimentos como quem aspira o ar matinal, tão suave e fresco. Em "bem-me-quer-mal-me-quer" o personagem manuseia os sonhos com a mesma destreza com a qual o poeta faz dançar as letras ante seus olhos. Seus pensamentos sonoros são como o vibrar das cordas duma harpa celestial, ao toque sublime dos anjos. Como é fácil guiar-se por entre as paredes de uma casa tão comumente escura. O mesmo não se dá trafegando pelos labirintos incandescentes de uma mente em plena erupção. Pensamentos tão palpáveis que se poderiam tocar e trazer, impressas nas digitais, as marcas de suas explosões. Sendo que a explosão maior é aquela capaz de desconectar alma e corpo. como reintegrar, em perfeita forma, os muitos fragmentos de si mesmo? O personagem sai assim, aos pedaços, sorvendo a brancura das coisas visíveis e desejáveis. Só não pode sorver a alvura de um sono denso. Suas noites são absurdamente escuras, rasgadas apenas pelo brilho efêmero das estrelas cadentes que, desta vez, também se ausentaram; furtando, na fuga, seu útimo pedido. Mas o que, enfim, teria lhe furtado o sono? Talvez o muito manusear de amores, o intenso despetalar de rosas: bem-me-quer-mal-me-quer!
Parabéns por mais um excelente texto. Você me surpreende a cada mergulho: que mente, que idéias!

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Maringá, Paraná, Brazil
Marco Hruschka é natural de Ivaiporã-PR, nascido em 26 de agosto de 1986. Morou toda a sua vida no norte do Paraná: passou a infância em Londrina e desde os 13 anos mora em Maringá. Sempre se interessou em escrever redações na época de colégio, mas descobriu que poderia ser escritor apenas com 21 anos. Influenciado por professores na faculdade – cursou Letras na Universidade Estadual de Maringá – começou escrevendo sonetos decassílabos heroicos, depois versos livres, contos, pensamentos e atualmente dedica-se a um novo projeto: contos eróticos. Seu primeiro poema publicado em livro (Antologia de poetas brasileiros contemporâneos – vol. 49) foi em 2008 e se chama “Carma”. De lá para cá já, entre poemas e contos, já publicou mais de 50, não apenas pela CBJE, mas também em outras antologias. Em 2010 publicou seu primeiro livro solo: “Tentação” (poemas – Editora Scortecci). Em 2014, publicou “No que você está pensando?” (Multifoco Editora), livro de pensamentos e reflexões escrito primordialmente no facebook. É professor de língua francesa e pesquisador literário.

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"A vida é um compromisso inadiável" M. H.
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